País tem um morto a cada 15 minutos no trânsito
05/07/2019

Com um morto a cada 15 minutos, os acidentes de trânsito despedaçam famílias. “É como se caísse um avião com cem pessoas todo dia”, diz Rodolfo Rizzoto, do SOS Estradas. Nos últimos 20 anos, o número de mortes supera o de vítimas de armas de fogo. Para especialistas, as mudanças no Código de Trânsito propostas pelo governo, como tolerar mais velocidade e elevar o limite de pontos para o infrator perder a habilitação, trarão mais mortes e despesas. O SUS gastou R$ 5,3 bilhões em procedimentos médicos relacionados ao trânsito.
Mães perdem filhos, filhos perdem pais. São milhares as histórias atravessadas pela epidemia de mortes no trânsito que o Brasil, há décadas, vive e não tem sido capaz de controlar. A cada 15 minutos, em média, uma morte é registrada nas ruas e estradas do país. Em 20 anos, foram 734.938 óbitos, segundo levantamento do GLOBO a partir de dados públicos do Ministério da Saúde — número superior à população de nove capitais, como Vitória, Cuiabá e Florianópolis. Além das vidas interrompidas e das marcas trágicas deixadas em seus sobreviventes, os acidentes sobrecarregam a saúde pública. Entre 1998 e 2018, o país desembolsou R$ 5,3 bilhões, corrigidos pela inflação, em 2,8 milhões de procedimentos médicos relacionados ao trânsito, cobertos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Levantamento do Conselho Federal de Medicina estima que esses acidentes geram mais de 160 mil internações por ano. Quem estuda o assunto prevê que o cenário deve piorar, com mais acidentes, mortes e gastos públicos, se medidas propostas pelo presidente Jair Bolsonaro que alteram o Código de Trânsito Brasileiro avançarem no Congresso. Entre elas, o aumento de 20 para 40 pontos do limite para o motorista infrator perder a carteira. — Todos os dias temos o equivalente a um avião com cem passageiros caindo — resume Rodolfo Rizzoto, coordenador do programa SOS Estradas, ao lembrar do impacto na Previdência: — Falta calculadora aos governantes. Se você fizer a conta dos benefícios de se combater os acidentes no trânsito, vai ver que, para o governo, é um excelente negócio.
MAIS LETAL QUE ARMAS
A proporção de mortes no trânsito é comparável à de homicídios. Em 20 anos, 726,6 mil foram assassinadas por armas de fogo. — Não é tirando radar que se resolve, mas aumentando a fiscalização. O essencial está no comportamento do motorista.
O trânsito nunca foi tratado como tema de governo e está sendo politizado —avalia José Aurelio Ramalho, do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV). Autor da Lei Seca, o deputado federal Hugo Leal (PSD-RJ) afirma que, para reduzir os índices de acidentes de trânsito, é preciso combater as causas, que vão além da imprudência:
— É preciso olhar região por região. Aqui os acidentes são provocados pelo traçado errado de uma rodovia? É o motociclista que não usa capacete? É a falta de sinalização? Então vamos buscar os responsáveis pela via, educar o motociclista, cobrar a sinalização. O perito criminal Rodrigo Kleinübing, especialista em acidentes de trânsito, pondera que as estatísticas oficiais estão aquém da realidade e que o total de mortos é ainda maior. Os dados disponíveis não consideram em todo o país óbitos ocorridos até 30 dias após os acidentes, como é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e a maior parte dos estados contabiliza apenas mortes imediatas. —A realidade fica em torno de 60 mil mortes por ano no trânsito. Vivemos uma epidemia —conclui Kleinübing. — E a maioria é jovem. Olha o tamanho do problema que temos. As pessoas não estão olhando para as estatísticas.
A morte do professor universitário Orlando de Oliveira Borges é uma das que ficaram de fora das estatísticas. Sua rotina incluía a passagem pela BR-393, que liga Barra Mansa, no Sul Fluminense, até a BR-040 (Rio-Juiz de Fora), na altura de Três Rios, já na Região Serrana.
A estrada é considerada uma das mais perigosas do estado. Em 2005, à época com 46 anos, o professor despencou de uma ponte, na altura de Barra do Piraí. Desde então, foram dois anos em coma e mais seis vivendo em uma cama, sem poder se movimentar, até morrer. — À época, testemunhas contaram que ele foi fechado por um caminhão. Depois, disseram que um carro havia batido no do meu pai, mas esse carro nunca apareceu. Ele era prudente ao dirigir — conta o filho de Orlando, o artista visual Pedro Borges, de 32 anos.
UMA GERAÇÃO PERDIDA
Quase 40% dos mortos no trânsito têm até 29 anos. São vítimas como a universitária Mariana Paranhos, de 22, atropelada no Centro do Rio. Nove anos depois do acidente, o coração da funcionária pública Cibele Paranhos, de 61, sua mãe, ainda aperta ao passar pela Presidente Vagas. O acidente aconteceu numa segunda-feira após o Dia das Mães. Mariana havia saído mais cedo da faculdade, onde estudava Administração, para comprar o bolo de aniversário da avó, que hoje tem 89 anos.
O acidente que matou sua filha única aconteceu a cem metros do prédio onde Cibele trabalha até hoje. Para chegar ao emprego, a funcionária pública é obrigada a passar pelo local, que a transporta para o 5 de maio de 2011. —No dia da morte de minha filha eu morri junto. Morri porque precisei nascer novamente, crescer numa nova realidade, ter de aprender a viver sem ela —conta Cibele.
As maiores vítimas fatais, em 20 anos, foram os pedestres (24,7% do total), os mais vulneráveis nas vias, mas eles têm sido substituídos rapidamente pelos motociclistas no topo do ranking de óbitos, à medida que o meio de transporte se popularizou no Brasil. A frota de motocicletas quase triplicou em 13 anos.
O tatuador MichaelD’ Ag os tini, de 27, associa motocicleta arisco. Ele lembra que foi em um acidente com uma delas que seu irmão morreu há 14 anos. Washington D’Agostini, de 23, caiu em um buraco no viaduto sobre a Rodovia Presidente Dutra, na Baixada Fluminense, e perdeu o controle do veículo. Lançado da moto, bateu coma cabeça. —No caso dele, não foi imprudência, ma sé o que mais mata motociclistas. Se o motorista não for prudente, a violência não acabará—diz Michael, que meses depois perdeu um primo em outro acidente comum a moto.
FONTE: O GLOBO