Só abertura de leitos não será suficiente para evitar colapso, dizem especialistas
09/03/2021
Para especialistas em gestão hospitalar, em UTIs e saúde pública, é positiva a decisão do governo de João Doria (PSDB) de instalar 11 hospitais de campanha com 280 leitos (140 de UTI e 140 de enfermaria) anexados a estruturas já existentes, e não em locais improvisados, porque isso pode otimizar o uso de recursos humanos e de insumos.
No entanto, essas medidas, que devem ser adotadas até o fim deste mês, não serão suficientes para atender a demanda de leitos, especialmente os de UTI, se não houver de fato um isolamento social eficiente (ou lockdown, como defendem alguns) e uma redução do número de casos de Covid-19.
Para os especialistas consultados, sem reduzir a circulação do vírus e o número de novas infecções, o colapso do sistema é quase certo.
Para o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, a criação de leitos anexos a serviços de saúde é uma boa saída porque cria um "colchão de amortecimento" dos hospitais já existentes.
"Como quem administra [os novos leitos emergenciais] é o hospital, ele pode tirar gente de dentro e colocar para fora [nas tendas], pode rearranjar funcionários. Isso exige inteligência, mas acho que a maioria dos gestores de hospitais públicos tem competência para isso."
O médico sanitarista Claudio Maierovitch, da Fiocruz Brasília, lembra que, além de instalar novas estruturas, há outras formas de criar leitos neste momento, como usar áreas ociosas de hospitais públicos e privados ou transformar unidades inteiras em "covidários", como ocorreu com o Instituto Central do Hospital das Clínicas ano passado.
"Montar equipes tem sido uma dificuldade, mas não é só isso. É pensar em todos os serviços de um hospital, como farmácia, lavandeira, limpeza, cozinha, vigilância. Em em um lugar onde isso já existe, fica mais fácil", diz Maierovitch.
No entanto, Vecina reforça que o mais adequado para enfrentar a falta de leitos é diminuir a demanda por eles. Ou seja, reduzindo casos. "Como medida emergencial, mais leitos são desejáveis. É melhor fazer isso do que fazer uma loteria na porta das UTIs dos hospitais", afirma.
Walter Cintra, médico e professor de administração hospitalar e sistemas de saúde da FGV (Fundação Getúlio Vargas), tem opinião parecida quanto à necessidade urgente em diminuir o número de novos casos de Covid-19.
"É lockdown, não tem jeito. As medidas tomadas até agora pelo governo paulista não são suficientes. Não adianta abrir mais leitos. Estamos perdendo a corrida para a Covid. A única maneira de tentar alcançar é reduzir drasticamente o número de casos e ampliar o mais rápido possível a vacinação", diz ele.
"O atendimento de casos é uma redução de danos, reduzir as consequências de tudo o que aconteceu antes. Só que não estamos fazendo quase nada do que acontece antes antes. A vacinação, que foi a última coisa que nos sobrou [porque não houve prevenção], segue em ritmo de lesma", afirma Mairovitch.
Ele se diz favorável a um lockdown em todo o país. "Mas para isso funcionar, todas autoridades teriam que falar a mesma coisa. Enquanto tiver um governo federal dizendo para não fazer lockdown, vão continuar a briga de governadores e os protestos de caminhoneiros."
Também há uma preocupação sobre se haverá pessoal em número suficiente para contratação nesses hospitais de campanha e a qualidade da assistência oferecida por eles.
"Todo mundo está falando em abrir leito, abrir leito. Isso tranquiliza as pessoas. Mas muitos desses leitos não serão abertos porque não vai ter pessoal. E existe um problema ainda mais grave: aqueles que serão abertos com profissionais não qualificados, porque eles são um desastre", diz o intensivista Ederlon Rezende, do conselho consultivo da Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira).
Por que um desastre? Porque o cuidado de um paciente grave na UTI depende, além dos aparelhos de suporte à vida, de uma equipe qualificada, explica Rezende.
Por exemplo, um profissional bem treinado sabe utilizar o ventilador mecânico com maestria, de maneira a proteger o pulmão do paciente e não provocar mais lesões.
"Quem não tem conhecimento adequado, pode ter o melhor equipamento, mas não vai saber usá-lo corretamente e pode danificar ainda mais o pulmão já inflamado."
Para o intensivista, o principal fator associado à morte de jovens sem comorbidades na pandemia é o cuidado inadequado. "É o improviso, o colapso do sistema. É o jovem que não consegue chegar a uma UTI ou que chega tardiamente ou chega numa UTI sem estrutura adequada."
Na opinião de Rezende, abrir hospital de campanha para atender paciente grave de Covid-19 é um equívoco.
"É caro e não funciona. Faz mais sentido melhorar a estrutura de hospitais já montados para que eles recebam o paciente grave, que vai necessitar de ventilação mecânica invasiva e precisa ter uma equipe capacitada."
Na avaliação de Walter Cintra, o momento é de esgotando geral das equipes e não cabe mais a discussão do que é mais eficaz. "É o que tem."
Segundo ele, na primeira onda da pandemia, fez menos sentido ainda ter montado hospitais de campanha porque havia espaço para converter leitos para o atendimento de pacientes com Covid. "Agora, essa discussão está superada. O que der para abrir, abre. Seja lá o que for."
Para ele, o principal culpado desse caos sanitário é o presidente Jair Bolsonaro. "É muito difícil um governador, um prefeito, tomar uma medida de força se o presidente está contestando. Precisamos fazer uma comissão com o Congresso e o Supremo, tutelar o Ministério da Saúde e coordenar as ações de combate à pandemia", diz Cintra.
Vecina Neto afirma que no atual ritmo da produção de vacinas contra a Covid e de imunização é possível que o país entre em 2022 sem ter conseguido atingir a imunidade de rebanho da população.
"Sem diminuir a disseminação, não vamos conseguir voltar à normalidade. Em Israel e na Escócia, que cobriram uma boa parte da população, os casos estão caindo."
Fonte: Folha de São Paulo