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Saúde básica, preço nem tanto

07/02/2020

Uma revolução está em curso no mercado de planos de saúde no Brasil. Impactadas pela diminuição de sua base de clientes — o tombo foi de 3 milhões desde a crise de 2014 —, as empresas do setor querem voltar a vender planos individuais a preços mais acessíveis. Esse tipo de produto se tornou desvantajoso para as companhias do ramo ao longo dos anos, pelo controle dos reajustes que não corresponderiam à inflação do segmento, e também para o consumidor, em razão de seu alto preço. Nesse cenário, os planos de saúde empresariais, contratados por companhias para seus funcionários, prosperaram e hoje respondem por 80% do mercado de saúde suplementar. Os individuais recuaram. Com a crise financeira e o aumento do desemprego e da precarização — e os efeitos disso nos cuidados com a saúde —, a proposta das operadoras é oferecer alternativas de cobertura mais baratas e mais restritivas, em alguns casos incluindo apenas exames e consultas. Mas, para isso, esbarram na lei.

 

Os planos de saúde são divididos em três grandes blocos, de acordo com a lei 9.659, de 1998: ambulatorial (com garantia de 12 horas de internação em caso de urgência e emergência), hospitalar e obstetrícia. O mais comum é a oferta do plano referência, que é uma combinação dos três blocos, com cobertura mais abrangente. Ao descobrir um câncer ou uma insuficiência renal, quem já contratou um plano ambulatorial — o mais simples entre os oferecidos no mercado — tem direito a medicamentos para combater o tumor, assim como a hemodiálise para suprir o mau funcionamento dos rins. Na proposta de criação de planos mais acessíveis — na qual é possível contratar separadamente módulos para exames, consultas e atendimento hospitalar com ou sem emergência —, quem não tiver contratado o módulo de terapias terá duas opções: pagar o tratamento em separado ou recorrer ao SUS. No setor de saúde, há consenso de que é necessária uma revisão para que o sistema de saúde privada se mantenha viável. Mas, em relação ao consumidor, especialistas veem o risco de que o novo modelo resulte em um atendimento inadequado e que os planos com cobertura completa acabem ficando ainda mais caros.

 

“Para a Senacon, órgão de defesa do consumidor do governo, a discussão proposta pelos planos de saúde deve ser vista ‘sem preconceitos’ e não necessariamente sob a ótica dos direitos do usuário final”

 

Vera Valente, diretora executiva da FenaSaúde — associação que reúne as maiores empresas do setor e que assina a proposta com apoio da associação de medicina de grupos, a Abramge —, defende que, ampliando o acesso à saúde suplementar por meio da flexibilização dos planos, o setor desoneraria o SUS. “A ideia é trazer mais opções com a segmentação. Hoje esse cidadão depende 100% do SUS. A maioria das pessoas não precisa da oncologia”, ponderou Valente. Outro pleito das empresas previsto na proposta é que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) derrube a regra que limita os reajustes anuais dos planos individuais, deixando-os sob a discricionariedade das empresas. “A liberdade de reajuste permitiria que as empresas competissem mais entre si, e os consumidores ficariam protegidos pela possibilidade da portabilidade. Se uma empresa aumentar demais seu plano, você tem a opção de migrar para outra operadora. Estamos trazendo a discussão, mas, se a sociedade não quiser, que traga suas propostas”, afirmou a representante da entidade que defende as empresas.

 

Propostas de redução de cobertura e liberdade de reajuste vêm sendo ventiladas nesse mercado — com 47 milhões de usuários — desde 2016, quando o então ministro da Saúde, Ricardo Barros, tentou emplacar uma proposta de planos populares que encontrou resistência de entidades de defesa do consumidor e de técnicos da ANS. Em 2017, o então deputado Rogério Marinho apensou 140 projetos sobre a saúde suplementar num único texto, também desenhado para oferecer planos acessíveis, mas que acabou sendo engavetado. O tema agora voltou à agenda do governo federal. Luciano Timm, titular da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), órgão ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, diz que vai publicar um edital para contratar uma consultoria especializada para um “debate sofisticado” sobre a regulação do setor e lembra que o Ministério da Economia também está debruçado sobre o tema. “Sempre acho que é melhor ter opções do que não ter escolhas. Nossa proposta é entrar num debate regulatório sofisticado com todos os players do mercado, sem preconceito e não estritamente à luz do Código de Defesa do Consumidor. O Ministério da Economia já vem estudando estratégias para tornar esse mercado mais competitivo”, disse o secretário.

 

A ANS não quis comentar a proposta em discussão, mas argumentou, em nota, que o foco da discussão deve ser “o interesse público”. Henrique Neves, vice-presidente da Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp), vê como natural uma atualização da lei do setor, depois de 22 anos de vigência. Mas ponderou que ela acarreta uma restrição ao usuário. “A segmentação reduz o acesso à cobertura hospitalar, e isso será um problema, pois atenderemos o paciente ambulatorialmente e não poderemos seguir com o atendimento”, disse. Na avaliação de Breno de Figueiredo Monteiro, presidente da Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde) — que representa oito confederações nacionais da saúde e 91 sindicatos do setor, como hospitais, clínicas e laboratórios —, a proposta das empresas cria um novo problema em relação à utilização do SUS: “O usuário vai ter o diagnóstico com mais rapidez; e aí, o que acontece? Fura a fila do SUS para o tratamento ou a cirurgia? Sou radicalmente contra a proposta de modulação por entender que ela não atende à responsabilidade social exigida do sistema. Vai ser criada dificuldade de acesso a atendimento de complexidade, onerando o SUS. Para crescer, a saúde suplementar depende de emprego. É preciso encontrar um meio de fazer um ajuste na lei, sem desregulamentar”, disse.

 

O alto nível de tensão entre os atores da saúde suplementar é destacado pelo economista Arminio Fraga, Sócio

a Gávea Investimentos e presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde. “É saudável rediscutir as regras quando todas as partes estão descontentes. É preciso fazer essa discussão de forma transparente e buscar avançar. Mas a segmentação (proposta pelos planos) não parece ser, no longo prazo, boa para o país”, disse. Mário Scheffer, professor doutor do Departamento de Medicina Preventiva (DMP) da Faculdade de

 

Medicina da USP (FMUSP), também não aprova a saída lançada pelos planos como solução. “Na hora em que precisarem de fato desses planos com restrição de cobertura, os consumidores vão ser surpreendidos, pois não há oferta de uma assistência global. Antes de pensar em reduzir cobertura, é preciso esclarecer como esse setor mantém um faturamento crescente, apesar da perda de usuários”, ponderou. A estimativa é que o segmento tenha fechado 2019 com um faturamento de mais de R$ 210 bilhões, em comparação a R$ 197 bilhões do ano anterior. As empresas alegam que esses ganhos são anulados pela inflação de insumos médicos, que, no ano passado, foi quatro vezes maior do que o IPCA.

 

Na contramão do projeto defendido pelas empresas, as entidades de defesa do consumidor lembram que têm proposta própria: a regulação dos planos coletivos, que representam 80% dos beneficiários da assistência privada e acumulam reajustes que podem chegar à casa dos 70% ao ano, o que tem feito empresas entrarem na briga pelo controle de custos e até desistirem de oferecer o benefício a seus funcionários. “Trata-se de uma proposta que pretende tornar a relação entre empresas e beneficiários mais justa e mais sustentável, não colocando para fora do sistema justamente quem mais precisa. A expansão como está sendo proposta desenha modelos que não atendem as pessoas. A ideia é extrair o máximo de lucratividade. Expandir, de fato, é gerar saúde, e isso só se faz cuidando das pessoas”, disse Ana Carolina Navarrete, especialista do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

 

Fonte: Época

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